Após sua adesão ao Cristianismo, W. H. Auden costumava dizer em entrevistas que a arte é uma frivolidade, e que a única coisa relevante era amar a Deus e ao próximo. Por mais impressionante que seja que aparentemente não lhe tenha ocorrido que a arte pode ser também uma maneira de amar a Deus e ao próximo, sua afirmação faz sentido. Mas antes de chegar a seu sentido mais geral, vamos lembrar que, para Auden, dizer isto era de certo modo negar os breves anos de intensidade marxista-freudiana de sua juventude em Oxford, e enfatizar o que já tinha dito com o famoso “poetry makes nothing happen” do poema dedicado a W. B. Yeats. Auden queria mostrar que a arte não é eficaz enquanto instrumento de ação política, em suma.
Mas é interessante comparar a afirmação de Auden com o excessivo respeito à “arte” – aqui uso o termo apenas para me referir às “artes” do senso comum contemporâneo; no futuro, escrevendo sobre Coomaraswamy, precisarei o termo – que costumam ter certas pessoas; um respeito propriamente religioso. Crêem que as obras de Shakespeare, Camões ou sei lá quem são intocáveis como as palavras das Escrituras (nas quais mesmo a Igreja não deixou de tocar, aqui e ali; compare em diferentes Bíblias a enumeração dos frutos do Espírito Santo em Gálatas V, 22; leia a questão da Suma Teológica a respeito), e concedem às artes, com exclusividade, toda a dimensão do sublime, do transcendente, do “metafísico”; e aliás “metafísico” é uma das palavras mais vilipendiadas dos últimos 100 anos. Mas, voltando, há muitos que crêem que o playground mental proporcionado pelas obras de arte é o que existe de mais sagrado neste mundo, e também mais puro.
Um destes “muitos”, me lembro agora, foi Ezra Pound. Pound defendia abertamente que o mau artista deveria ser preso e era mesmo um totalitário. Era fascista, fascista mesmo, foi para a Itália apoiar Mussolini; não era o “fascista” da nossa linguagem comum, que significa apenas “pessoa de quem não gostamos”. Era um homem que era a favor de matar pessoas que discordassem de um plano político, um totalitário.
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A questão, é claro, é que os sonetos de Shakespeare, os poemas de Villon etc não são sagrados. Nem os quadros de Rembrandt. O ser humano nasce, creio, com uma espécie de ímpeto religioso; se este não for devotado às coisas realmente maiores, irá voltar-se para outras coisas, necessariamente menores; e é assim que nasce um Ezra Pound. Toma-se algo que é puro fruto do engenho humano, que é condicionado, local, circunstancial – toda obra de arte é circunstancial, mas isso é assunto para depois – e alça-se este algo ao patamar do universal. Eis, de modo grosseiro, uma pequena receita de totalitarismo. Vide, um pouco mais ao norte da Europa, a importância que Hitler dava à arte.
A pessoa religiosa, por outro lado, sabe que transcendente só Deus; que extraordinário só Deus; e Deus é inapreensível. A consciência da própria pequenez diante de Deus gera o bom-senso: “posso estar errado”. Não é tão difícil criticar Yeats ou Valéry ou Auden ou Pound; mas é impossível elevar-se por si ao nível de Deus e criticá-lO. A pessoa religiosa sabe que um poema é só um poema; que a gigantesca maioria dos poemas, mesmo os mais importantes, constitui apenas uma forma de diversão. De diversão sim: a alma tem necessidade de relaxamento. Pessoas boçais rebolam, se entopem de comida, e pessoas inteligentes lêem poemas, vêem quadros, ouvem música.
Que Auden tenha aparentemente desconsiderado esta necessidade da alma, entende-se pelo contexto. Mas nós não temos o contexto dele; eu, ao menos, não tenho. Tenho à minha volta, na Faculdade de Letras, pessoas atéias que acham que escritores são deuses; idolatria, óbvio.