Ainda Hamlet (e aproveitando para discordar de mim mesmo)

Tenho três textos favoritos a respeito de Hamlet, mas não considero nenhum deles realmente satisfatório. O primeiro está nas Lectures on Shakespeare de Auden, já citadas. A grande virtude do texto de Auden é levantar uma série de questões plausíveis a respeito de como a peça foi feita; Auden sempre faz questão de olhar a arte muito mais do que o “conteúdo” propriamente dito. Outra coisa a se apreciar em Auden é a sua atitude em relação a Shakespeare: tem a reverência devida sem cair na idolatria, e é capaz de criticá-lo com justiça e amor. O defeito do texto de Auden me parece ser o mesmo que há nos outros: a tentativa de ler em Hamlet alguma idéia de certo modo exterior à peça. Auden era um freudiano e ex-marxista quando deu suas aulas sobre Shakespeare, e suas concepções “a respeito da vida e do mundo” falam mais baixo do que as dos demais. Mesmo assim, há um certo “mundanismo” na sua leitura.

O segundo texto é o capítulo de Martin Lings a respeito em The Sacred Art of Shakespeare. Aliás, o livro de Lings e o de Auden poderiam ser lidos simultaneamente, apenas para oferecer evidência indubitável da possibilidade de se fazer leituras inteligentes e quase que totalmente discordantes da mesma obra. Os dois têm, também, afirmações inteiramente gratuitas, e às vezes seus argumentos se baseiam nelas; mas, raios, nem Auden nem Lings são Deus.

Lings ressalta todos os aspectos “espirituais” (em se tratando de um notório guénoniano / schuoniano / muçulmano, não posso dispensar as aspas) que Auden deixa de lado, e lê a peça como uma pura alegoria em que os personagens representam faculdades ou estados da alma humana. Quando Hamlet diz, por exemplo, que é “indifferent honest”, Lings entende isto como uma prova de que ele é um homem virtuoso o suficiente para estar com a salvação garantida, até porque o tema de Hamlet e das demais peças seria não a salvação, entendida como “ir para o purgatório”, mas a santificação, entendida como ir para o céu. Coerentemente, é o próprio Lings quem diz, acho que em Ancient Beliefs & Modern Superstitions, que “nothing short of perfection will enter the gates of Paradise”. Não consigo deixar de pensar que entrarão no Paraíso aqueles que Jesus quiserem – como o ladrão que se arrependeu na cruz, ao lado de Cristo – e que o Sr. Lings não tem nada com isso, mas enfim. A promotoria do Juízo Final só é menos cobiçada do que o júri – o qual, felizmente, não pode ser comprado.

Lings faz de Shakespeare o garoto-propaganda da suposta “tradição primordial”, que Guénon e Schuon entendem de modos diferentes. Se não me engano, para Guénon isto seria algo como a religião dada por Deus ao próprio Adão, e para Schuon uma espécie de base intrínseca da experiência espiritual humana, a qual a partir de um certo nível (muito elevado, na verdade) seria essencialmente a mesma. Na verdade, caros leitores, é um tanto difícil entender exatamente o que o Schuon quer dizer. Talvez eu retome este assunto no futuro. O que eu quero dizer aqui é que Lings está apenas dizendo que Shakespeare “é um de nós”, e de fato oferece argumentos interessantes. Falsos, acho; mas que têm a grande virtude de “desmundanizar” Shakespeare e lembrar da força do elemento religioso em suas peças. Aliás, eu prefiro a palavra “religioso” ou “teológico” a “metafísico”, neste contexto; retornarei a isto em algum momento.

Se digo isso de Lings, não posso deixar de lembrar de Harold Bloom, que com muito menos talento e muito (muito, muito, muito, muito) mais palavras tenta provar que Shakespeare é um gnóstico niilista que só quer liberar a tal da centelha divina que há no homem. Mas, como Lings mesmo sugere, podemos saber muito sobre uma pessoa a partir de sua reação ao trecho de Macbeth em que o próprio diz:

Life’s but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more: it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.

(Ato 5, cena 5, versos 26-30)

Se ela concorda com isso, é obviamente um niilista. Se acha que Shakespeare mesmo subscrevia isto, é um boçal, por não ter percebido que Macbeth é claramente maniqueísta e que Macbeth é o vilão. Se o vilão diz isso, você deve entender o contrário. Fecha-se o círculo vicioso: leitor não percebe que é o vilão quem diz aquilo, concorda e ainda se identifica, porque a sua própria vida é uma historinha contada por um idiota.

O terceiro texto, um artigo de Chesterton, me foi enviado recentemente por um amigo. Maravilhosamente escrito, claro – sobretudo o trecho em que Chesterton fala das galerias (“the gods”), que não transcrevo para não fugir do assunto.

A “tese” de Chesterton a respeito de Hamlet é a seguinte: Hamlet é cristão porque, nos momentos de maior desespero, ele tem falar otimistas, como a que começa com “What a piece of work is man!”, e o otimismo diante do horror seria uma característica cristã. Pode ser assim, se entendemos o otimismo como a virtude teologal da esperança; mas me parece que esta leitura, além de querer apenas mostrar que Hamlet é “católico”, também quer provar que seu catolicismo tem este tempero particular, dentre tantos outros possíveis. A idéia de garantir a presença de Shakespeare entre as hostes católicas certamente me é agradável; mas não me parece que o Bardo possa ser cooptado assim tão facilmente.

No fim, Hamlet acaba provando o quanto é difícil nos aproximarmos de uma obra sem expectativas. O impacto de Hamlet é tão grande que fica difícil verbalizar algo a respeito. Isto é, o ideal seria simplesmente ler a peça, ou ver uma encenação sua, e, em vez de “interpretá-la”, apenas conseguir aceitá-la tal como se apresenta – exatamente, aliás, como deveríamos aceitar qualquer coisa. Mas é difícil.

***
A discordância: Quando eu falei que seria fácil para nossa sensibilidade cristianizada aceitar que Hamlet se tornasse monge e abdicasse de seus deveres mundanos, e que isto era exclusivo do Cristianismo, alguém poderia ter me dito que não, que este valor também é estóico, e que aliás Shakespeare era leitor dos estóicos etc. Muito bem, seria verdade, e eu mesmo aceito a minha própria correção. Mas o que me parece ainda ser uma especificidade cristã é a idéia de que a verdadeira felicidade só será atingida se você realmente abraçar a sua vida interior de tal modo que os acontecimentos exteriores façam pouca diferença, “porque o Reino de Deus está dentro de vós” e este Reino também “não é deste mundo”. A resistência do cristão ao mal é cheia de esperança na vida eterna, que ele já recebe dentro de si; mas e o estóico, espera pelo quê?

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