Minha formação (V)

6. William Shakespeare, Hamlet. (1996)

To Miss G., who is about to begin her academic career in the land of the free and home of the brave

Meu primeiro contato com William Shakespeare aconteceu também em 1991, quando Marta de Senna nos fez ler Othello. Em 1994, assisti a uma montagem da peça aqui no Rio. Em janeiro de 1995, Othello foi o primeiro livro que eu comprei nos EUA, na Columbia University Bookstore.

Aliás, vale dizer que eu estava fazendo um curso de inglês em Columbia com a professora Sheri Handel, a quem devo minha fluência na língua. Foi minha primeira professora americana, e foi quem me ensinou que muita coisa considerada normal e até louvável no Brasil poderia ser inaceitável nos EUA, ou pelo menos em uma universidade decente. Ela pegou textos meus, primores de confusão mental, que certamente teriam sido elogiados por aqui, e me obrigou a reescrevê-los todos como uma pessoa normal. Para usar uma expressão chinesa, eu era muito céu, e ela botou um tanto de terra para equilibrar. Ou, se preferirem expressões mais ocidentais, eu tinha muito mercúrio, e ela botou enxofre na mistura.

Voltando a Shakespeare, foi ele, além da professora Handel, quem me motivou a aprender inglês. Quando eu saí do Brasil, não gostava da língua, e ainda adorava afetar uma certa indiferença aos EUA, misturada com um pouco daquela superioridade tropicalesca. Mas, ao ver na livraria o texto elisabetano de Othello, decidi: vou ler esse negócio com fluência. O fato de eu estar possuído de amor (e ódio) por uma donzela que ficara no Brasil, é claro, contribuía para manter o interesse pela peça e para inspirar o esforço da leitura.

Mas eu me aproximei de Othello como um conquistador, controlando exatamente o efeito que a peça tinha sobre mim, meditando cada verso, debatendo comigo mesmo a propriedade ou impropriedade daquilo que os personagens diziam. Foi só quando o professor Charles Affron (o mesmo que me fez ler The Romance of Tristan) nos mandou ler Hamlet, para compararmos com a (chatíssima) versão cinematográfica de Lawrence Olivier, que eu coloquei Shakespeare no primeiro lugar do meu panteão literário, e senti que uma obra é que me explicaria, e não eu a ela.

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Em suas Lectures on Shakespeare, W. H. Auden falou de como todos se identificam com o personagem de Hamlet, o que aconteceu comigo. Bem, mas por que as pessoas se identificam
com Hamlet? Porque elas crêem – eu creio, ou melhor: não creio, mas ajo como se cresse – que são inocentes, nunca fizeram mal a ninguém, que são “indifferent honest” (Ato III, cena 1), e portanto não merecem as coisas ruins que lhes acontecem: no mais das vezes, nada tão dramático quanto os eventos da vida de Hamlet, mas pelo menos a morte de um ente próximo e querido, ou uma grande desilusão amorosa. Diante do absurdo que estas situações apresentam, é óbvio que só é possível ficar perplexo. Mas esta perplexidade obriga o sujeito a tentar se recompor e verbalizar o que lhe incomoda – daí os monólogos de Hamlet, com destaque para o maior verso fora da Bíblia, pelo seu poder de concisão: “To be or not to be, that is the question” – Eros e Thanatos, a tensão entre o desejo de viver e resistir, ou ceder à tibieza, que também é uma tentação, e suicidar-se. Paul Valéry, acho, disse que o homem se mata porque não consegue tornar-se poeta. O ideal, creio, é trazer a palavra “poeta” de volta à sua origem grega: “poietés”, criador. Criar, na esfera humana, equivale a agir; e não agir é morrer. Mas Hamlet, diriam, é um personagem que não age; não, porque a contemplação e a ação do intelecto são formas de ação – aliás, formas de ação superiores.

Pensar isto, porém, é uma especificidade cristã. A idéia de que uma resistência interior é válida, de que a fidelidade da consciência individual à verdade é mais importante do que os atos externos parece não existir no mundo clássico. Imaginem o que diria Odisseu se Penélope tivesse se casado com um dos pretendentes, e lhe dissesse que fez isto apenas exteriormente, pois em seu interior nunca deixou de amá-lo? É difícil ver Odisseu aceitando bem esta explicação. Mas as dúvidas de Hamlet não geram antipatia em nós, e nem mesmo o fato de que ele vinga o pai mais por acidente do que por plano. É verdade que o fantasma do pai aparece para lhe cobrar resultados, mas creio que se Hamlet decidisse virar monge, escapando da missão delegada pelo fantasma do pai, ninguém o culparia.

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