Quotas raciais e escravidão

Elio Gaspari está desenvolvendo com afinco a própria capacidade de desenvolver comparações flagrantemente desonestas.

Toda semana, sem falta, ele faz uma comparação entre algum crítico (por mais brando e moderado que seja) do sistema de quotas e algum defensor da escravidão, para tentar demonstrar como os argumentos contra as quotas são mera repetição do discurso da “elite” contra a ascensão social dos negros.

Tirei a seguinte pérola de sua coluna de ontem (perdoem a transcrição longa; detesto ficar transcrevendo bobagem, mas a falácia da argumentação é tamanha que vale a pena registrá-la):

‘O ministro da Educação, Tarso Genro, deu sua opinião sobre o sistema de cotas para beneficiar os estudantes negros que, tendo sido aprovados nos exames vestibulares, não conseguiram se classificar:

“Sou totalmente favorável, mas elas são totalmente insuficientes. Um grande processo de inclusão é que vai resolver em definitivo essa questão.”

‘Não disse nada de novo. Em maio de 1870, o deputado Rodrigo da Silva dizia o seguinte do projeto da Lei do Ventre Livre:

“Não teremos necessidade, por exemplo, de auxiliar estabelecimentos de educação que recebam as crianças escravas libertas pelos seus senhores ou pelas sociedades humanitárias?

Não será um embaraço para o aumento das libertações a falta de estabelecimentos desta ordem?”

‘A idéia segundo a qual a medida A é insuficiente, pois a patuléia precisa da medida B, muito mais abrangente, faz parte do patrimônio retórico do andar de cima. Destina-se a deixar o andar de baixo sem A nem B.’

Agora vejamos: que relação pode haver entre a observação (perfeitamente razoável, diga-se) de que o sistema de quotas não é suficiente para melhorar a qualidade de vida da população negra, com outra que, sob pretexto de criticar insuficiências da Lei do Ventre Livre, acaba por defender a permanência do status quo?

Há, é fato, uma aparente similitude, decorrente da identidade de estrutura dos argumentos. Mas, substancialmente, trata-se de coisas radicalmente diversas.

Primeiro, porque afirmar que o sistema de quotas é insuficiente não equivale, necessariamente, a repudiar sua aplicação.

Segundo, e muito mais importante, porque não há nenhuma relação entre a abolição da escravidão (i.e., a abolição de uma das maiores brutalidades já institucionalizadas na história da humanidade, pela qual se reduzia o ser humano à condição de animal) e a criação de privilégios para uma determinada raça.

Ocorre que, repetida ad nauseum, tal comparação acaba por ter um efeito paralisante sobre as inteligências. Feita a aproximação, por mais absurda e incoerente que seja, entre a argumentação a favor da escravidão e a argumentação contra as quotas, está criado um poderoso instrumento de repressão psicológica à argumentação contrária às quotas, uma vez que qualquer crítico dessa política temerá passar por defensor da escravidão.

Está criado, assim, mais um daqueles lugares-comuns a que os imbecis opiniosos recorrem para não precisarem se esforçar para pensar. Já se vêem, na seção de cartas do Globo, inúmeros leitores afirmando, simplesmente, que a resistência à idéia de quotas (que, geralmente, decorre apenas do apego sensato à idéia de igualdade de condições e da salutar resistência à instituição de privilégios odiosos por meio de leis) equivale à defesa da escravidão. Outra não é a intenção do Gaspari.

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